Diz uma lenda que o “estalo”
que houve na cabeça do menino Antônio Vieira serviu para torná-lo um dos
maiores oradores da Companhia Jesus, o gênio do Barroco brasileiro. Publicou
mais de 200 sermões e um calhamaço de umas 700 cartas. Quando em Lisboa, no
púlpito da Igreja da Misericórdia, perante Dom João IV, um fidalgo baixinho,
gordo, feio, com as pernas cheias de perebas, seguido por uma bajulenta Corte,
o Pe. Antônio Vieira disparou o verbo contra os corruptos acompanhantes de sua
Majestade: — Antigamente, quem andava ao lado dos Reis eram os Laterones,
nobres de coração! Hoje, corrompeu-se o vocábulo e os acompanhantes, chamam-se
de latrones! Foi um dos maiores discursos do famoso Pe. Vieira, antes que
aquela contagiosa Corte viesse se esbaldar no Brasil, infelizmente. Chamou-se o
Sermão do Bom Ladrão, embora na Bíblia a gente não encontre uma citação sequer
sobre um ladrão bom. E continuou o Padre, incisivo: — Quantas vezes se viu
Portugal a enforcar um ladrão de galinha e, no mesmo dia, elevar ao triunfo um
Governador, por ter roubado uma província?
Em tempo algum, um discurso
antiguíssimo, foi tão atual!
No Brasil, do Oiapoque ao
Chuí, nunca se roubou tanto! Na quase totalidade dos 5570 municípios o modus
operandi da ladroagem é o mesmo, numa criatividade e imaginação insuperáveis
para o resto do mundo: Licitações viciadas, desvios de verbas legalizadas,
tarifas astronômicas, taxas abusivas que matam o cidadão e a Lei fazendo com
que “Fichas Sujas” fiquem limpas como o milagre da água em vinho, através de
acordos escusos e indecentes embargos infringentes. Noutro Civilizado Mundo,
dizem: No Brasil, o povo é bobo!
O destemido Pe. Antônio Vieira, com o dedo em riste,
concluiu ao pronunciar, lentamente, cada palavra como uma punhalada sem
misericórdia na consciência desavergonhada e incrédula da plateia: — Basta,
senhor, que eu, porque roubo uma galinha, sou ladrão, e vós que rouba
descaradamente da força pública, sóis Governador?
Ouçam... A voz de Vieira ainda
retumba no ar!
No ano de 1952, no Distrito de
Nova Russas, numa das grandes seca dos Sertões de Cratheús, ouviu-se o choro de
mais uma criança que nascia na prole, já numerosa, de Dona Maria e do senhor
José Henrique do povoado de Rosário. Era o menino Antônio Vieira, que foi
adotado pela caridosa Lili Rosa, compadecida daquela precária situação
familiar, e resolve levá-lo para o Rio de Janeiro. Poderia ter sido um benévolo
padre, com a aptidão do Paiaçu Vieira dos indígenas brasileiros, se a sorte
assim o quisesse. Não quis! Desde cedo a criança foi mostrando uma propensão
natural para pegar o que não lhe era devido. Um brinquedinho de um amigo, um
lápis, uma borracha de um colega no colégio e a coisa foi ficando séria. Tão
séria que aos onze anos pegou seu primeiro xilindró!
Os vizinhos o tinham na conta
de fino larápio e a polícia já o amaciara, por diversas vezes, com uns “leves
carinhos” de um cassetete. No Rio de
Janeiro desenvolveu a arte e a técnica de surrupiar como os gatos, de subtrair
furtivamente, imperceptível como se invisível fosse. Roubou até a quem o
ajudou!
As inúmeras tentativas de
correção e a paciência de Dona Lili para entender o descaminho daquele menino,
já chegaram ao limite. Ele dizia que alguma coisa o impelia a roubar, como um
“Estalo de Viera” invertido, uma compulsão enorme para furtar o dominava.
Acorrentaram-no, inúmeras vezes, como a um animal perigoso no quintal e nada
adiantou! Mal se via livre das amarras,
os roubos começavam na redondeza.
A solução foi mandá-lo de
volta para Cratheús, aproveitando uma viagem de navio de Francisca Rosa que se
encontrava na Cidade Maravilhosa. Torrou o dinheiro da digníssima Dona Rosa no
bar da embarcação, e já surrupiara as reluzentes talheres de prata, quando os
marinheiros notaram a artimanha do fino gatuno. Foi um pega num pega, uma
correria danada pelo convés do navio, até que o acuaram na amurada. Depois
deste costado de ferro rugia a imensidão do mar, estava pego, pensaram os
marujos. Ele não teria coragem de pular. Pulou!
Mergulhou na imensidão do
Oceano Atlântico sem o mínimo de medo, pois sabia que a sua vida já estava como
a brisa do mar, sem rumo, sem prumo e nada mais faria diferença. Mas subiu
pelas cordas que lhe jogaram, talvez percebendo que o mar é quem rouba, nunca é
roubado.
Já na terra natal
arrumaram-lhe um emprego: varrer os capuchos de algodão que ficavam espalhados
pelo chão da Algodoeira. A primeira coisa que sumiu foi o dinheiro das
vassouras! Aqui encontrou o ambiente ideal de praticar as suas estripulias,
pois logo fez amizades com o Chico Lau, O Louro Guaraciaba, o Joaquim da Romana
e o grande sócio Luiz Cabeleira, que guardava os frutos diários dos furtos.
Muitos autores consagrados
escreveram bons livros como: A arte da Guerra, a Arte da Sedução, a Arte de
Falar, a Arte de Amar... Mas somente um escreveu, primorosamente, nas páginas
do próprio corpo, a arte da fuga: o memorável gatuno Antônio Vieira, mais
conhecido por Cerinha!
A polícia crateuense cansou de
jogá-lo nas solitárias masmoras, na escuridão do Cara-Preta, num xadrês
apertadíssimo chamado de O Litro, onde ficava totalmente nú, com o chão
completamente molhado e ele cinicamente dizia: - Ôpa! Ainda hoje eu fujo daqui!
O Litro prá mim é sopa...
O Sgt Holanda foi quem o
apelidou, ao vê-lo com as costas grudadas num canto de parede, subindo como uma
lagartixa, as mãos e os pés grudando e desgrudando com uma força adesiva das
melhores ceras que existem. Os soldados ficavam boquiabertos com a capacidade
de fuga do Cerinha. Conseguira fugir facilmente até da Colônia Agropastoril do
Amanari, em Maranguape.
Quando “hospedado” na Cadeia
Pública de Crateús, no fim de tarde, as alunas da Madre Palmeiras, do Patronato
Senhor do Bonfim, todas com uma blusa branca e uma gravatinha azul gravada as
letras PSB, iam visitar o Cerinha. Algumas levavam cigarros e até ofereciam
bombons. Certo dia cerinha entra pelo teto de uma residência, já marcada para
um roubo. Dizem que, antes de descer, silenciosamente, eles defumavam todo o
ambiente com o perfume da cannabis sativa, para fortalecer o sono dos
dorminhocos. Cerinha reconhece a aluna que lhe oferecia brindes e ordena aos
companheiros: — Nesta casa não vamos roubar! Vamos só ver o que deixaram de bom
prá gente, na geladeira!
No dia em que prenderam Luiz
Cabeleira, o afoito gatuno Cerinha resolveu soltá-lo! Pois amizade verdadeira
não quer saber de defeitos ou de qualidades. Até as sombras da noite dormiam,
depois que apagaram os lusco-fuscos dos postes. Errou o local da cela e
destelhou foi o aposento do perverso e tarado Manoel da Lindaura que, de burro
e tolo, ainda alertou os soldados. E o Povo dizia: O Cerinha é mais liso que
sabão! Novamente fugiu.
Por toda redondeza dos sertões
corria a fama do larapio crateuense: Em Juazeiro do Norte, em São Benedito, em
Fortaleza... Em todas elas, com o consentimento da noite, ele furtou!
Tenho a impressão que as
paredes da Cadeia Pública de Crateús sentem saudades desde o dia em que ele
fugiu pela última vez, e não mais regressou.
Dizem que colocaram um ponto
final no seu interminável livro de histórias de fugas.
Dizem que ele se enfadou de
tantas facilidades em fugir das prisões do Ceará, rumou para outras aventuras e
hoje se encontra muito bem de vida, numa velhice honesta, lá para o lado de
Salvador, onde seu xará Pe. Antonio Vieira tanto pregou em prol da dignidade e
da honradez do povo brasileiro e que, em meu insignificante julgar, nunca aprendemos!
Mas, como Cerinha, que voltou
para salvar o velho amigo, volto também atrás em minha opinião, quando me
lembro das palavras do grande gênio do Barroco brasileiro: “Quando julgamos aos
outros, condenamos a nós mesmo”
Mesmo assim, sinto uma danada
nostalgia de quando os ladrões do nosso surripiado Cratheús eram do tipo do
mito chamado Cerinha!
Raimundo Cândido