Raimundo Cândido Teixeira Filho - Professor, poeta, escritor, pesquisador.

sexta-feira, 6 de abril de 2018

Cerinha – O Mito




Diz uma lenda que o “estalo” que houve na cabeça do menino Antônio Vieira serviu para torná-lo um dos maiores oradores da Companhia Jesus, o gênio do Barroco brasileiro. Publicou mais de 200 sermões e um calhamaço de umas 700 cartas. Quando em Lisboa, no púlpito da Igreja da Misericórdia, perante Dom João IV, um fidalgo baixinho, gordo, feio, com as pernas cheias de perebas, seguido por uma bajulenta Corte, o Pe. Antônio Vieira disparou o verbo contra os corruptos acompanhantes de sua Majestade: — Antigamente, quem andava ao lado dos Reis eram os Laterones, nobres de coração! Hoje, corrompeu-se o vocábulo e os acompanhantes, chamam-se de latrones! Foi um dos maiores discursos do famoso Pe. Vieira, antes que aquela contagiosa Corte viesse se esbaldar no Brasil, infelizmente. Chamou-se o Sermão do Bom Ladrão, embora na Bíblia a gente não encontre uma citação sequer sobre um ladrão bom. E continuou o Padre, incisivo: — Quantas vezes se viu Portugal a enforcar um ladrão de galinha e, no mesmo dia, elevar ao triunfo um Governador, por ter roubado uma província? 
Em tempo algum, um discurso antiguíssimo, foi tão atual!
No Brasil, do Oiapoque ao Chuí, nunca se roubou tanto! Na quase totalidade dos 5570 municípios o modus operandi da ladroagem é o mesmo, numa criatividade e imaginação insuperáveis para o resto do mundo: Licitações viciadas, desvios de verbas legalizadas, tarifas astronômicas, taxas abusivas que matam o cidadão e a Lei fazendo com que “Fichas Sujas” fiquem limpas como o milagre da água em vinho, através de acordos escusos e indecentes embargos infringentes. Noutro Civilizado Mundo, dizem: No Brasil, o povo é bobo!
O destemido Pe. Antônio Vieira, com o dedo em riste, concluiu ao pronunciar, lentamente, cada palavra como uma punhalada sem misericórdia na consciência desavergonhada e incrédula da plateia: — Basta, senhor, que eu, porque roubo uma galinha, sou ladrão, e vós que rouba descaradamente da força pública, sóis Governador?
Ouçam... A voz de Vieira ainda retumba no ar!
No ano de 1952, no Distrito de Nova Russas, numa das grandes seca dos Sertões de Cratheús, ouviu-se o choro de mais uma criança que nascia na prole, já numerosa, de Dona Maria e do senhor José Henrique do povoado de Rosário. Era o menino Antônio Vieira, que foi adotado pela caridosa Lili Rosa, compadecida daquela precária situação familiar, e resolve levá-lo para o Rio de Janeiro. Poderia ter sido um benévolo padre, com a aptidão do Paiaçu Vieira dos indígenas brasileiros, se a sorte assim o quisesse. Não quis! Desde cedo a criança foi mostrando uma propensão natural para pegar o que não lhe era devido. Um brinquedinho de um amigo, um lápis, uma borracha de um colega no colégio e a coisa foi ficando séria. Tão séria que aos onze anos pegou seu primeiro xilindró!
Os vizinhos o tinham na conta de fino larápio e a polícia já o amaciara, por diversas vezes, com uns “leves carinhos” de um cassetete.  No Rio de Janeiro desenvolveu a arte e a técnica de surrupiar como os gatos, de subtrair furtivamente, imperceptível como se invisível fosse. Roubou até a quem o ajudou! 
As inúmeras tentativas de correção e a paciência de Dona Lili para entender o descaminho daquele menino, já chegaram ao limite. Ele dizia que alguma coisa o impelia a roubar, como um “Estalo de Viera” invertido, uma compulsão enorme para furtar o dominava. Acorrentaram-no, inúmeras vezes, como a um animal perigoso no quintal e nada adiantou!  Mal se via livre das amarras, os roubos começavam na redondeza.
A solução foi mandá-lo de volta para Cratheús, aproveitando uma viagem de navio de Francisca Rosa que se encontrava na Cidade Maravilhosa. Torrou o dinheiro da digníssima Dona Rosa no bar da embarcação, e já surrupiara as reluzentes talheres de prata, quando os marinheiros notaram a artimanha do fino gatuno. Foi um pega num pega, uma correria danada pelo convés do navio, até que o acuaram na amurada. Depois deste costado de ferro rugia a imensidão do mar, estava pego, pensaram os marujos. Ele não teria coragem de pular. Pulou!
Mergulhou na imensidão do Oceano Atlântico sem o mínimo de medo, pois sabia que a sua vida já estava como a brisa do mar, sem rumo, sem prumo e nada mais faria diferença. Mas subiu pelas cordas que lhe jogaram, talvez percebendo que o mar é quem rouba, nunca é roubado.
Já na terra natal arrumaram-lhe um emprego: varrer os capuchos de algodão que ficavam espalhados pelo chão da Algodoeira. A primeira coisa que sumiu foi o dinheiro das vassouras! Aqui encontrou o ambiente ideal de praticar as suas estripulias, pois logo fez amizades com o Chico Lau, O Louro Guaraciaba, o Joaquim da Romana e o grande sócio Luiz Cabeleira, que guardava os frutos diários dos furtos.
Muitos autores consagrados escreveram bons livros como: A arte da Guerra, a Arte da Sedução, a Arte de Falar, a Arte de Amar... Mas somente um escreveu, primorosamente, nas páginas do próprio corpo, a arte da fuga: o memorável gatuno Antônio Vieira, mais conhecido por Cerinha!
A polícia crateuense cansou de jogá-lo nas solitárias masmoras, na escuridão do Cara-Preta, num xadrês apertadíssimo chamado de O Litro, onde ficava totalmente nú, com o chão completamente molhado e ele cinicamente dizia: - Ôpa! Ainda hoje eu fujo daqui! O Litro prá mim é sopa...
O Sgt Holanda foi quem o apelidou, ao vê-lo com as costas grudadas num canto de parede, subindo como uma lagartixa, as mãos e os pés grudando e desgrudando com uma força adesiva das melhores ceras que existem. Os soldados ficavam boquiabertos com a capacidade de fuga do Cerinha. Conseguira fugir facilmente até da Colônia Agropastoril do Amanari, em Maranguape.
Quando “hospedado” na Cadeia Pública de Crateús, no fim de tarde, as alunas da Madre Palmeiras, do Patronato Senhor do Bonfim, todas com uma blusa branca e uma gravatinha azul gravada as letras PSB, iam visitar o Cerinha. Algumas levavam cigarros e até ofereciam bombons. Certo dia cerinha entra pelo teto de uma residência, já marcada para um roubo. Dizem que, antes de descer, silenciosamente, eles defumavam todo o ambiente com o perfume da cannabis sativa, para fortalecer o sono dos dorminhocos. Cerinha reconhece a aluna que lhe oferecia brindes e ordena aos companheiros: — Nesta casa não vamos roubar! Vamos só ver o que deixaram de bom prá gente, na geladeira!
No dia em que prenderam Luiz Cabeleira, o afoito gatuno Cerinha resolveu soltá-lo! Pois amizade verdadeira não quer saber de defeitos ou de qualidades. Até as sombras da noite dormiam, depois que apagaram os lusco-fuscos dos postes. Errou o local da cela e destelhou foi o aposento do perverso e tarado Manoel da Lindaura que, de burro e tolo, ainda alertou os soldados. E o Povo dizia: O Cerinha é mais liso que sabão! Novamente fugiu.
Por toda redondeza dos sertões corria a fama do larapio crateuense: Em Juazeiro do Norte, em São Benedito, em Fortaleza... Em todas elas, com o consentimento da noite, ele furtou!
Tenho a impressão que as paredes da Cadeia Pública de Crateús sentem saudades desde o dia em que ele fugiu pela última vez, e não mais regressou.
Dizem que colocaram um ponto final no seu interminável livro de histórias de fugas.
Dizem que ele se enfadou de tantas facilidades em fugir das prisões do Ceará, rumou para outras aventuras e hoje se encontra muito bem de vida, numa velhice honesta, lá para o lado de Salvador, onde seu xará Pe. Antonio Vieira tanto pregou em prol da dignidade e da honradez do povo brasileiro e que, em meu insignificante julgar, nunca aprendemos!
Mas, como Cerinha, que voltou para salvar o velho amigo, volto também atrás em minha opinião, quando me lembro das palavras do grande gênio do Barroco brasileiro: “Quando julgamos aos outros, condenamos a nós mesmo”
Mesmo assim, sinto uma danada nostalgia de quando os ladrões do nosso surripiado Cratheús eram do tipo do mito chamado Cerinha!
Raimundo Cândido

segunda-feira, 5 de março de 2018

Antônio Vieira da Vitória – Um seleiro contador de História.



               Acompanhei e só no olhar, naquele domingo ensolarado do dia 9 de Julho de 2017, a passagem da 9ª Cavalgada dos Sertões de Cratheús, que vai até o Distrito do Realejo. A coluna de animais, que desta vez bateu recorde, eram de uns 500 belíssimos cavalos, alazões, tordilhos, castanhos, rosilhos, pretos e até pangarés que iriam percorrer os 21 km de marcha equina trotando pela estrada com sons característicos: topok, topok, topok, pa ta ti pa ta tá e que chagavam aos meus ouvidos e me encantavam. Percebi, no meio dos elegantes equus caballus, um menino montado num jegue, o que me deu o direito de também sonhar, como versejou o poeta Pablo Neruda: “O vento é um cavalo / Ouça como ele corre / Pelo sertão, pelo céu. / Quer me levar: escuta / como recorre ao mundo / para me levar para longe.” E vi-me, um centauro, tal homo caballus, todo orgulhoso trotando na concorrida cavalgada promovida pelo Dr. Wagner Claudino Sales, idealizador e organizador do evento.
Hoje, a Cavalgada de Cratheús, é o acontecimento mais tradicional da cidade. A valorização dos animais foi grande, um incremento de cinco vezes seu o valor nestes nove anos em que essa belíssima cena hípica ocorre. Dava gosto ver os cavaleiros e amazonas com suas selas luxuosas e peitorais vermelhos, azuis ou amarelos na frente dos cavalos.
E, só de ver tantas selas bonitas, deu vontade de saber como elas são feitas, então chamei o amigo Rogério Bonfim e fomos à Vitória, lá no Curral Velho, visitar Antônio Vieira, um grande seleiro e afamado contador de histórias, com seus 80 janeiros de vida.
De longe avistamos a casinha branca e um pequeno alpendre improvisado na calçada alta, local onde o mais famoso seleiro de Cratheús exerce sua arte.
Um sorriso tímido, mas de sincera alegria, é o cartão de visitas do sertanejo quando chegamos a sua porta: - O que trás os meus amigos a minha casa? Contamos o nosso propósito e ele não se fez de rogado, explicou-nos tudo e ainda mostrando cada uma das peças: - Primeiro a gente faz a armação, de raiz de oiticica. A parte dianteira, o cepilho, é de um pau chamado João Mole. Com tudo pronto, vamos enervar, que é cobrir com couro cru e costurado com tiras de couro de bode.  Depois vêm as gualdrapas, já tratadas, grosadas, ligadas às sobrecapas costuradas na máquina. Então encho o suadouro e vou fazer as guardas. Com os arreios prontos, o loro preso aos estribos, a cabeçada com as rédeas e está tudo pronto, é só colocar em cima do cavalo. Antigamente eu fazia duas selas por semana, hoje é uma em duas semanas.
Ouvindo falar assim até me pareceu fácil, mas olhando os detalhes de tudo e a beleza da arte final, percebemos o enorme talento que a profissão exige. Ele continua, pois tem a palavra fácil na mente, como grande contador de histórias: - Aprendi com meu pai, seu Clinio Vieira, que era seleiro e carpinteiro dos bons e dava gosto a gente ouvi-lo contar a vida de todos os Presidentes do Brasil.
Quando Rogério pediu para que o seleiro contasse uma história, ele, então, começou:
- Minhas histórias são do outro tempo, na época que existiam homens duros. Uma vez colocaram uma junta de dez bois de engenho da serra para comer nos pastos do Saco do Punga. Um deles, o grande boi crioulo, de chifres curtos, ficou bravo e ninguém pegava. Era um boi corredor. O Manelzim leitão tinha um cavalo bom, chamado Anu, e mesmo assim não conseguiu pegar o bicho. Então ele propôs ao seu irmão, Zequinha Leitão, que tratasse do Anu no decorrer de um mês, e que ele conseguiria pegá-lo.
 Assim foi feito, tratou do cavalo e foi atrás do animal, mas logo voltou. Manelzim perguntou: - Cadê o boi, Zequinha? Ele respondeu: - O cavalo não deu! Manelzim olhou para os vazios do animal e não vendo uma gota de sangue, falou: - José, cavalo bom também precisa apanhar!  Zequinha baixou a cabeça, se amofinou num canto e não falou mais nada. Manelzim teve um pressentimento que o boi, agora, estava pegue. De manhã cedo saíram e manelzim pensava: “Hoje ele pega, pois vai com muita raiva”. Avistaram o bicho comendo na lagoa do Pau Barriga e se aproximaram por trás de uma grande pedra. Quando o Anu disparou, parecia uma flecha rente com o chão e o boi entrou na mata levando tudo que era moita pela frente. O crioulo era ligeiro demais, a quebradeira de paus parecia o trovão do fim do mundo! Só se ouvia a estaladeira de galhos que caíam e até um eito de cerca de faxina eles derrubaram. Com pouco notou que tudo ficou quieto e, ao chegar ao local, viu o touro amarrado e o Zequinha sentado no chão, estático e sufocado. Colocou um pouco de rapé no nariz dele para que voltasse a respirar e trouxeram o boi crioulo puxado na corda.
O mestre Antônio Vieira, que é um dos últimos artífices do couro e um dos últimos contadores, nato, das histórias do sertão, ao pressentir o nosso interesse por mais relatos, continuou: - Vou contar para vocês  uma história do maior mentiroso destas bandas, o Antônio Leitão. Ele mentia era com arte, dizia que fazia as coisas, mas não fazia, não! Disse que o pai dele, Seu Manoel leitão, falou assim: - Antônio, nesta semana você vai pegar a vaca que está de bezerra nova na serra da Uburaninha e estão brabos. Vá lá, leve seus irmãos e traga a que você pegar primeiro. Ele disse: - Eu vou é só mesmo! Meteu-se no gibão e quando chegou na mata viu um bicho vermelho passar e imaginou, é a bezerra! Passou o cavalo para ela, pegou e amarrou no tronco de uma árvore e nem deu fé que estava com as mãos arranhadas.  Foi para casa avisar que tinha pegue a bezerra e que o pai mandasse busca-la, que estava amarrada em tal lugar. O pai dele até perguntou: - E o que foi isso em suas mãos?  - Eu não sei, pai! Respondeu. – É bom o senhor mandar buscar a bezerra, que eu vou atrás da vaca! Foram ao caminho indicado e logo voltaram.  O senhor Manoel perguntou: - Porque não trouxeram a bezerra? No que responderam: - Não, seu Manoel, lá tem é uma onça vermelha amarrada!
O seleiro Antônio Vieira da Vitória é um valoroso livro cheio de saborosas histórias e, se passássemos o dia por lá, ouviríamos dezenas de relatos que fazem do sertão um local cheio de lendas e repleto de aventuras.
Como um centauro, metade cavalo, metade homem que se encantou com a 9ª Cavalgada de Crathéus, fico torcendo que a nova tradição criada pelo Dr. Wagner ajude a resgatar essas belas histórias dos rincões do nosso sertão.

Raimundo Cândido

Cerinha – O Mito

Diz uma lenda que o “estalo” que houve na cabeça do menino Antônio Vieira serviu para torná-lo um dos maiores oradores da Companhi...